O Nome Dogmática: Diferentes Nomes para a Dogmática - Herman Hoeksema

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Capítulo 1

O Nome Dogmática

Diferentes Nomes para a Dogmática

 

Diferentes nomes têm se dado para o ramo da ciência teológica, que é agora geralmente conhecido como dogmática, mas que em nosso país é muitas vezes chamada de teologia sistemática. Orígenes escreveu seu De Principiis (Primeiro Princípios),[1] Lactâncio seu The Divine Institutes, [2] Agostinho seu The Enchiridion, Addressed to Laurentius.[3]

 

Originalmente o nome de dogmática era usado como adjetivo. Nesse sentido ocorre na obra de L. Reinhard.[4] Logo depois, o termo dogmática tornou-se o nome desse ramo da ciência teológica. A partir de diferentes nomes usados, isto torna-se evidente que esta ciência que é designada por dogmática, pretende ser teologia, conhecimento de Deus; que o objetivo é estabelecer os loci (Lugares ou divisões), as principia (princípios), ou o ἀρχαί (primeiros princípios) deste conhecimento de Deus; e que uma consciência tenta definir adiante esses princípios dentro de um caminho sistemático.

 

 

O Nome Dogmática é Preferido

 

Preferimos o nome dogmática ao de teologia sistemática por duas razões. Primeiro, teologia sistemática dificilmente pode ser uma denotação distinta desta ciência. Certamente, toda teologia, e não apenas dogmática, é sistemática. Na verdade, isso é verdade para toda a ciência. Apropriar-se do nome teologia sistemática para a dogmática quase implicaria um insulto para o resto da teologia.

 

Em segundo lugar, o nome de dogmática leva em conta o fato de que este ramo da ciência teológica respeita adequadamente o trabalhar da igreja do passado. Isto faz não simplesmente acordo com a Escritura, mas com o dogma. Um dogmático, não é apenas "abrir a Bíblia" como um aluno que não pertence a nenhuma denominação. Ele não aborda a Bíblia nem em qualquer ocasião, nem como uma pessoa individual, mas como um membro da igreja do passado e de uma forma especial da igreja do presente.

 

Segue-se que, ao aplicar-se a esta ciência, o dogmático respeita e aceita os dogmata da Igreja católica e os dogmas específicos de sua denominação. Por esses o dogmático está livremente vinculado. Ele está vinculado a eles por causa de sua participação em sua própria e determinada igreja. E ele está livremente vinculado porque na doutrina dessa igreja ele encontra a mais pura expressão de sua fé.

 

Um dogma pode ser definido como uma doutrina extraída das Escrituras, definido e oficialmente estabelecido pela igreja. Tal dogma não pode obrigar a consciência. A autoridade do dogma nunca é final, mas sempre sujeito à autoridade da própria Escritura; portanto, não pode haver incondicional sujeição para um dogma. Por esta razão a expressão livremente vinculado é usada.

 

Com este dogma, ou sistema de dogmas, o dogmático trabalha. Ele desenvolve um sistema lógico. Ele o compara criticamente com as Escrituras ou estabelece sua harmonia com a palavra de Deus, e por isso significa que ao estudar a Escritura, ele trabalha para enriquecer e para trazer o dogma da igreja para o mais perfeito desenvolvimento da doutrina.

 

 

Capítulo 2

A Definição da Dogmática

Dogmática Definida

 

Dogmática é uma disciplina teológica na qual o dogmático, em conexão orgânica com a igreja do passado, bem como no presente, tem os propósitos de extrair das Escrituras o verdadeiro conhecimento de Deus, para o expor de forma sistemática, e, após uma comparação dos dogmas com as Escritura, trazer o conhecimento de Deus para um mais alto estado de desenvolvimento.

 

Uma Crítica à Definição de Karl Barth

 

Várias outras definições de dogmática foram dadas, com as quais não precisamos nos preocupar aqui. A definição dada por Karl Barth, no entanto, pode prender nossa atenção, pois parte fundamentalmente da concepção geralmente aceita de dogmática. Segundo Barth, a dogmática como uma disciplina teológica é um autoexame científico da igreja cristã com respeito a Fala relativa de Deus que é característica ou peculiar para ela.[5] Nós notamos que esta definição é intimamente relacionada com a concepção peculiar de Barth da Palavra de Deus, que não precisamos discutir em detalhes aqui.

 

 E realmente nós saímos sem nenhum critério objetivo do conhecimento de Deus. A dogmática é um autoexame por parte da igreja: ela examina seu próprio discurso sobre Deus. Esta Fala sobre o papel da Igreja ser relativo a Deus é o princípio fundamental da dogmática, de acordo com Barth.

 

Isso é puro subjetivismo. Se o próprio discurso da igreja a respeito de Deus deve ser o princípio da dogmática, um conhecimento sistemático de Deus não é possível. Dentro desta definição da dogmática, Barth claramente revela seu subjetivismo e misticismo.

 

Os Elementos de uma Definição apropriada

 

Dentro de uma explicação da nossa definição da dogmática, nós daremos atenção para os seguintes detalhes:

 

Primeiro, o objeto da dogmática é o verdadeiro conhecimento de Deus. Houve, e ainda há, uma controvérsia acerca dessa questão. De acordo com alguns, não Deus mas as Escritura ou, dentro em geral, a revelação é objeto da teologia e, portanto, também da dogmática. O Sr. Dr. A. Kuyper, defende esta posição especialmente para sustentar que a teologia é uma das ciências enciclopédicas.[6] Herman Bavinck, no entanto, sustenta que a dogmática é o conhecimento de Deus, e ele não hesita em fazer de Deus o objeto da ciência dogmática.[7] Realmente não podemos ver que há algum conflito real aqui e não podemos entender por que o objeto da dogmática não pode ser Deus como ele se revelou particularmente nas Escrituras.

 

Entende-se, é claro, que Deus como ele é em si mesmo não pode ser jamais o objeto de nossa investigação científica, investigação ou conhecimento. Se queremos fazer separação entre revelação e Deus, não há conhecimento de Deus. Num sentido relativo, isso é verdade para todo o conhecimento, como apontou Kant. Lidamos com um mundo fenomenal; se quisermos fazer separação entre os fenômenos e a coisa em si (das Ding an sich), não pode haver nenhum conhecimento do mundo como tal. No entanto, acreditamos que os fenômenos são representações verdadeiras do mundo objetivo. Quão infinitamente mais isso se aplica ao nosso conhecimento de Deus. Ele é o invisível, o imperceptível em si mesmo. Não há fenômenos em Deus. Mesmo as Escrituras não são um fenômeno de Deus.

 

Ninguém jamais viu Deus. Além disso, Ele é absoluto, soberanamente acima de todas as leis e relações, enquanto devemos sempre lidar com o relativo porque estamos debaixo da lei. Ele é o infinito, enquanto nós somos limitados e presos por todos os lados. Ele é o eterno, e nós estamos no tempo. Nunca poderá haver qualquer conhecimento dele se precisarmos estabelecer a conexão necessária para tal conhecimento e alcançá-lo como objeto de nossa ciência. Não podemos examiná-lo. Mas embora não exista nenhum fenômeno Deus, e embora o finito não possa alcançar com sucesso o infinito, há uma revelação divina, e o infinito alcançou o finito.

 

Nesta revelação temos um meio adequado e uma fonte verdadeira através da qual derivamos o conhecimento real e adequado de Deus, mesmo que seja finito. Portanto, podemos certamente dizer que o objeto da dogmática é Deus revelado. Isto está em harmonia com as Escrituras, que falam do conhecimento de Deus que é a vida eterna (João 17:3). É verdade que neste versículo se entende mais do que o conhecimento dogmático de Deus, mas é igualmente verdade que o conhecimento de Deus, que é vida, é impossível sem o conhecimento intelectual dele.

 

Segundo, o tema da dogmática em sentido amplo é a igreja guiada pelo Espírito. É ela quem estabelece o dogma. Isto não altera o fato de que não são todos na Igreja que desenvolvem a dogmática, nem a Igreja institucionalmente – embora seja ela quem tem o selo da autoridade eclesiástica ao dogma. Pelo contrário, é o dogmático individual que se ocupa da disciplina da ciência dogmática. Este dogmático é membro de uma igreja definida e historicamente existente; por essa razão ele não aborda o estudo da dogmática sem quaisquer pré-possessões.

 

Ele nasceu e foi instruído na igreja da qual é membro, de modo que inicia seu trabalho dogmático com um tesouro de conhecimentos e princípios dogmáticos, e de modo que, através da igreja do qual é membro, ele torna-se herdeiro do dogma da igreja do passado. Ele não é não denominacionalista, queira ele ou não. Seria totalmente contrário à vontade e à providência de Deus, que estabelece e mantém a sua igreja e o conhecimento da sua aliança na linha das gerações continuadas, caso o dogmático tente iniciar sua carreira dogmática sem qualquer preconceito. Ele deve trabalhar com os tesouros que já recebeu e tentar enriquecê-los.

 

Terceiro, é tarefa do dogmático apresentar a verdade da revelação de Deus de uma forma sistemática. Acreditamos que a verdade é mais do que um sistema; também acreditamos que a verdade é uma, assim como Deus é um. Acreditamos, portanto, que a verdade é sistemática e que as diferentes verdades estão relacionadas. O caos nunca é verdade, porque Deus não é caos. Em outras palavras, o sistema lógico não está apenas na mente do dogmático, mas na verdade (ao contrário do Kantianismo). No entanto, as Escrituras não são dogmáticas. É antes o registro da revelação histórica de Deus ao seu povo. Portanto, pertence à tarefa do dogmático apresentar sistematicamente a verdade tal como ela é nas Escrituras.

 

Quarto, embora a igreja coloque o seu selo de autoridade sobre as verdades dogmáticas extraídas das Escrituras, de modo que não pode haver dogmas no verdadeiro sentido, a menos que sejam estabelecidos eclesiasticamente; contudo, a sua base última não é a autoridade da igreja, mas apenas a das Escrituras. Segue-se que pertence à tarefa do dogmático que ele deve sempre comparar os resultados dos trabalhos dogmáticos da igreja com as Sagradas Escrituras e que ele deve ser capaz de demonstrar que o seu dogma é baseado nas Escrituras.

 

Em última análise, o trabalho do dogmático deve ser de caráter exegético; à luz de uma exegese sólida, ele deve emitir um julgamento crítico sobre todos os dogmas aceitos.

 

Capítulo 3

Os Métodos da Dogmática

 

Vários métodos foram e ainda são seguidos pelos dogmáticos. Esses métodos, geralmente são determinados pela atitude que um determinado dogmático assume em relação à revelação e por sua visão das Sagradas Escrituras.

 

O Método Eclesiástico

 

O método eclesiástico data da escolástica, embora já tenha sido sugerido por Agostinho. Isto ainda é mantido pela Igreja Católica Romana como um método apropriado. A autoridade da Igreja é exaltada acima da verdade das Escrituras. A Instituição-Igreja — o clero, e especialmente desde 1870, o Papa — é infalível.[8]

 

Portanto, os decretos do papa são infalíveis, e a única tarefa que resta ao dogmático é elucidar a verdade do que a igreja e seus decretos estejam fundamentados, ou seja pela razão da Escritura ou por ambos. De acordo com esta concepção, a Escritura é uma verdade subordinada à autoridade da igreja.

 

Embora, certamente seja verdade que a igreja é guiada pelo Espírito Santo, em toda a verdade e ainda que esta orientação é prontamente admitida como infalível, no entanto, contra este método, pode-se afirmar que esta pergunta se torna um terreno certo da manifestação da igreja que foi assim conduzida pelo Espírito Santo, dentro e estabelecendo um dado dogma que pode ser respondido dentro de um caminho de uma crítica comparação do tal dogma com a Palavra de Deus. Somente a Escritura deve sempre permanecer como único critério e primeiro princípio de conhecimento (principium cognoscendi) de toda a dogmática. É este princípio que foi enfaticamente proclamado pelos reformadores.

 

O Método Bíblico-Teológico

 

Radicalmente diferente do método eclesiástico e do método da Reforma, é o método bíblico-teológico. O slogan desse método é que nós devemos fazer um vai de volta para Escritura, e isso é feito por que aqueles que seguem este método, significa que devemos romper com os decretos dogmáticos, bem como de termos dogmáticos e simplesmente seguir a Bíblia.

 

Eles reclamam que, a menos que este método seja seguido por uma filosofia humanista, vai sempre ser carregado com o conteúdo das Sagradas Escrituras, e o dogmático falará em vez de deixar as Escrituras falarem. Segundo eles, os dogmas existentes mostram claramente que isso caracterizou os trabalhos da igreja no passado. Por isso devemos quebrar essas obras dogmáticas da igreja para retornar e aderir o mais próximo possível das Escrituras em si.

 

Há um elemento de verdade nessa concepção de teologia bíblica. Na dogmatização, o perigo de proceder da razão humana e não das Escrituras sempre existe.

 

Mesmo sendo uma premissa básica que pode ser derivada da Bíblia, não há garantia absoluta de que todas as conclusões dogmáticas tiradas de tal premissa realmente decorrem dela e, portanto, são verdadeiras. Além disso, a história do dogma mostrará que houve uma tendência a sintetizar a filosofia do mundo e os conteúdos da revelação. Aceitaremos esta advertência daqueles que defendem o método da teologia bíblica, mas levamos isto como um aviso só contra uma inscrição errada de certo método e não como uma prova que este método em si deve ser condenado.

 

Contra o método bíblico-teológico isto pode objetar e desprezar o trabalhar da igreja dentro do passado e totalmente ignorar ou condenar a orientação do Espírito Santo pela qual a igreja do passado foi conduzida a toda a verdade. Ignorar o fato de que a Escritura não é uma compilação de doutrinas prontas de forma sistemática e expressada em termos dogmáticos, mas que é revelação, tecida na textura do terreno e histórico desenvolvimento de Deus na Igreja dentro do mundo. E a teologia bíblica na verdade é uma condenação da dogmática per se. Na medida em que não quer ser tal condenação, simplesmente engana-se a si mesma, pois as mentes dos crentes podem apropriar-se da verdade das Escrituras somente na forma de contemplação lógica. É, portanto, tarefa do dogmático e da igreja extrair das Escrituras, toda a verdade do sistema, que é certamente presente dentro deles, no entanto isto não é revelado de forma sistemática.

 

O Método Subjetivo

 

Especialmente desde o período do Iluminismo (Aufklarung), vários métodos surgiram e entraram em voga, os quais, embora diferindo uns dos outros nos detalhes, têm em comum o fato de fazerem do homem o criador do seu próprio deus, tal como o fazem o homem, o criador de seu próprio mundo. Eles são os métodos subjetivistas. Eles procuram o homem autônomo.

 

Sob este título geral podemos distinguir entre diferentes escolas. Nós os distinguimos uns dos outros conforme buscam a fonte do conhecimento de Deus na vontade, no intelecto ou nas emoções e nas experiências místicas do homem.

 

Kant é o principal representante da primeira escola. Ele negou a revelação. Procurando a “razão pura” e suas operações, ele não encontrou Deus e, portanto, não teve lugar para ele. A razão pura não poderia contemplar o infinito. Mas, enfrentando o perigo do ateísmo, ele abriu espaço para Deus através da sua “razão prática” e descobriu a voz de Deus em “imperativos categóricos”. Na realidade, isto significa simplesmente que a consciência moral do indivíduo e da comunidade é o princípio fundamental do conhecimento de Deus.

A verdade é aquilo que está em harmonia com os ditames da consciência, e até Deus é medido por esse padrão. Consequentemente, não é realmente o conhecimento, mas a bondade, a vida, que verdadeiramente importa.

 

É fácil ver os erros fundamentais desta filosofia. Na escola kantiana é o homem moral quem faz o seu próprio deus à sua imagem. Isto é uma negação do pecado, porque no momento em que se reconhece o pecado, o imperativo categórico não é confiável, e um deus moldado segundo os conteúdos da consciência moral do homem é corrupto, tal como o próprio homem. Esta teoria é a ressurreição do antigo princípio do diabo no paraíso: “sereis como deuses [Deus], conhecendo o bem e o mal” (Gn.3:5). É uma negação da revelação e das Escrituras como palavra de Deus, pois a consciência moral do homem deve determinar quanto das Escrituras pode ser considerada valiosa e verdadeira. Este é o método ético-subjetivo.

 

Outra escola na mesma categoria geral seguiria o método intelectual. Hegel pode ser representado como o chefe desta escola de pensamento. Segundo ele, a mente finita postula dialeticamente o Deus infinito (a dialética na teologia Barthiana tem uma conotação diferente). Por mais limitada que seja a mente do homem, o resultado não é um deus, mas uma concepção vazia, uma conclusão lógica. O homem não pode alcançar Deus; o finito nunca pode tocar o infinito.

Sempre que o homem faz uma tentativa no orgulho de sua mente, o resultado é como Barth certa vez expressou: que ele imagina o que Deus diz quando o homem diz mais alto.[9] Se o homem quiser conhecer a Deus, Deus deve alcançá-lo. Deus deve falar; o homem deve ouvir. Ele deve ter revelação.

 

Finalmente, existe o método místico-subjetivo, que está ligado ao nome daquele adorável infiel que afirmava ser um infiel com a cabeça e um cristão no coração, o autor da teologia mediadora (Vermittelungstheologie), Schleiermacher.[10] Segundo ele e esta escola, a fonte do conhecimento de Deus encontra-se na experiência religiosa, especialmente na experiência religiosa da igreja, e particularmente no sentimento de dependência.

 

Mas os seguidores deste método enganam-se a si próprios, tal como Schleiermacher. Nenhum conhecimento de Deus deve ser derivado da experiência mística do indivíduo ou da igreja. Na verdade, a experiência mística não tem conteúdo a menos que seja interpretada. Aquilo que dá conteúdo a esta experiência mística na forma de conhecimento de Deus deve ser o próprio Deus ou o homem que faz o seu próprio deus. Nunca teria havido qualquer conhecimento de Deus na igreja ou qualquer experiência religiosa, exceto através das Escrituras. Dos três métodos subjetivos, o de Schleiermacher não é apenas o mais bonito, mas também, pela própria natureza do caso, o mais intangível e indefinido.

 

O Método Comparativo-Histórico-Religioso

 

Nos últimos anos, o método comparativo-histórico-religioso tornou-se bastante popular entre os dogmáticos modernos. De acordo com este método (existe uma verdade não dogmática dentro deste método), religião é simplesmente tratada como qualquer outro fenômeno histórico. A tarefa do dogmático, se assim pode ser chamado, é investigar as várias religiões do passado ou do presente, cristãs ou pagãs, e determinar o seu valor relativo.

 

Este método não procede de nenhuma concepção de revelação. Não existe um padrão objetivo de verdade religiosa pelo qual as várias religiões podem ser julgadas e avaliadas. Com certeza, a religião cristã não é a única religião verdadeira, embora possa ser relativamente a melhor. A verdade é provavelmente o maior denominador comum de todas as religiões. De acordo com este método, é evidente que o dogmático é ele mesmo a medida ou padrão da verdade.

 

O Método da Escola Barthiana

 

A escola Barthiana pode ser classificada como a escola subjetiva de pensamento, na qual historicamente teve sua origem, na medida em que Barth nega a autoridade objetiva e absoluta das Sagradas Escrituras como único princípio do conhecimento de Deus e de toda dogmática e teologia e substitui com o discurso da igreja a respeito de Deus como a fonte desse conhecimento. É verdade que Barth negaria isso, pois ele insiste que a palavra de Deus (das Wort Gottes) é a única fonte possível do conhecimento de Deus. No entanto, a concepção da Palavra de Deus de Barth é tal que não permanece um critério objetivo para a fala da igreja acerca de Deus. Barth acredita na revelação através dos “momentos”.

 

O Método Exegético-Sintético

 

O método correto dentro de toda a dogmática devo ser este, encontrar a fonte do conhecimento do Deus nas Escrituras, reconhecendo-as como a revelação completa e infalível de Deus ao seu povo, levando em conta a origem histórica dos dogmas existentes sob a orientação do Espírito Santo, demonstrando criticamente sua relação com a Bíblia, e visando sintetizar a verdade revelada nas Escrituras em um estudo sistemático. Este método pode ser chamado de método exegético-sintético.

 

 

Capítulo 4

Os Sistemas da Dogmática

 

Quanto ao sistema da dogmática, podemos notar que várias divisões do material da dogmática foram tentadas, cujas divisões diferem de acordo com o diferente princípio selecionado. Destes nós faremos menção a seguir de alguns sistemas.

 

O Sistema Trinitário

 

Há uma divisão trinitária, que foi uma das primeiras divisões e já sugerida para a fórmula do batismo, e que foi seguida na instrução dada aos convertidos à cristandade na igreja primitiva e incorporada no Credo dos Apóstolos. A linha geral desta divisão é Deus Pai e nossa criação, Deus o Filho e nossa redenção, e Deus o Espírito Santo e a nossa santificação, Como mencionado dentro do Catecismo de Heidelberg.[11] A objeção para isto é aquela divisão que devemos ter para evitar a perigo de separar as três pessoas da Trindade e seus trabalhos.

 

O Sistema Cristológico

 

Outro sistema que vem sendo seguido é o sistema cristológico, que se posiciona em Cristo. Isto passou a ser um argumento dentro da defesa do ponto de vista e sistema, que para nós só podemos conhecer a Deus através de Cristo e que, portanto, o conhecimento de Cristo é sempre o cerne do conhecimento de Deus. Consequentemente, a dogmática deve ser sempre Cristológica

.

Há verdade nesta afirmação no sentido de que Cristo é o mediador do conhecimento de Deus, o primeiro dentro e através do qual Deus se revela para nós. Mas isto também deve ser evidente que esta medida da revelação não pode ser o objeto principal da dogmática, que é o contínuo conhecimento de Deus. A dogmática, portanto, deve ser teológica; Cristologia deve ser só uma subdivisão.

 

O Sistema Pactual

 

Há uma divisão, introduzida por Cocceius e alguns outros, que partiram da ideia de pacto. Cocceius viu sobre a história do pacto como consistindo em uma série de pactos, dentro da qual a aliança posterior sempre aboliu a aliança anterior. Foi especialmente a sua concepção da aliança que fez com que a sua divisão da dogmática baseada nela fosse um fracasso.[12]

 

Considerada em si mesma, seria bem possível produzir uma dogmática do ponto de vista do pacto. Nós sugerimos as divisões principais como se segue: o pacto de Deus, o pacto com a criatura, o cabeça do pacto, o fundamento do pacto, a realização do pacto, o povo do pacto e o pacto da consumação.

 

O Sistema do Reino de Deus

 

Há uma escola, representada por homens como Van Oosterzee[13], que procede da ideia do reino de Deus. A principal objeção a este sistema é que o princípio da divisão é demasiado limitado e que grande parte do material da dogmática propriamente dita recebe uma posição bastante forçada nesta divisão.

 

O Sistema Tradicional

 

O sistema que é geralmente seguido hoje e bem conhecido é o dos seis loci. Como uma divisão prática, esta é provavelmente a mais preferível. Sua fraqueza, no entanto, encara uma de frente. Estritamente falando, seria preciso tratar toda a dogmática sob o primeiro locus. Os cinco loci seguintes a primeira não pode, de forma alguma, ser chamada de ser coordenada com ela. Mesmo assim, se o dogmático aplica um pouco de sabedoria e interrompe sua discussão sobre o primeiro locus no tempo, mesmo embora um tanto arbitrário, o método de divisão descrito abaixo ainda pode ser considerado o mais prático.

 

 

Teologia

          Nomes

          Essência

          Atributos

          Pessoas

          Obras

Obras Habituais

Obras Extras[14]

Antropologia

Cristologia

Soteriologia

Eclesiologia

Escatologia

 

 

 

 

 

Capítulo 5

Os Princípios da Dogmática

A Tarefa de uma Introdução para Dogmática

 

Pertence propriamente à introdução à dogmática indagar sobre a realidade, a possibilidade e as fontes do conhecimento de Deus e estabelecer e expor as leis epistemológicas ou princípios que devem fundamentar toda investigação dogmática científica. Essa consulta, no entanto, não pode continuar ao longo de linhas racionalistas, apesar que isto é feito muitas vezes.

 

A introdução para dogmática parece ser facilmente exposta para a perigo de tornar-se uma crítica racionalista, cuja tarefa é estabelecer a priori a possibilidade e o direito de uma ciência dogmática. A introdução, ou prolegômenos, tenta então estabelecer a racionalidade do conhecimento de Deus e deixar claro perante a barra da razão, independentemente das Escrituras, que o conhecimento de Deus é possível, que existe de fato um princípio objetivo de conhecimento (principium cognoscendi objectivum) — revelação - bem como um princípio subjetivo (principium cognoscendi subjectivum - a fé cristã. A conclusão é que a fé é bastante racional e que, portanto, a dogmática tem o direito de reivindicar um lugar entre as ciências.

 

Mas esta não pode ser a atitude de um dogmático cristão, mesmo na introdução. Se devemos tentar nos aproximar assim da dogmática, o próprio fato de que ele faz essa tentativa de uma abordagem filosófica, sua abordagem significará a sua ruína como dogmático; pois o que se começa ‘racionalmente’ não se pode concluir de acordo com o método da fé, nem uma abordagem filosófica pode levar alguém ao conhecimento de Deus e da revelação.

 

A introdução, portanto, não pretende ser uma defesa e justificativa (raison d'être) da dogmática antes da barra da razão. Ao contrário, bastante em harmonia com a própria dogmática, seu caráter e abordagem são, e devem ser, estritamente teológicos. Na introdução, o dogmático não é, e não pode ser sem pressupostos. Em vez disso, ele procede do princípio de que a Escritura é a revelação de Deus - de fato, que Deus é, que ele se revelou e que, portanto, ele é conhecível.

 

Certamente é tarefa da introdução evidenciar a possibilidade do conhecimento de Deus e, portanto, da dogmática. No entanto, ela faz isso não antes da barra da razão, mas antes da mente da fé. Mesmo na introdução, a revelação das Escrituras é nosso princípio objetivo de conhecimento. A abordagem, portanto, daquele que institui essa investigação sobre os princípios epistemológicos da dogmática é, e o restante, a abordagem da fé.

 

Isto é bastante impossível acreditando que o dogmático poderia definir à parte, de lado da sua fé e trabalhar a partir de outro princípio ao fazer esta indagação. Ele está enxertado em Cristo, por meio de quem recebeu uma nova vida e por quem sua mente é iluminada por uma nova luz. Ele vive na sabedoria de Cristo, e na esfera dessa sabedoria, ele realiza todos os seus trabalhos dogmáticos. Ele claramente discerne que fora dessa esfera, todo o seu trabalho dentro do interesse do conhecimento de Deus deve cessar, porque fora da mente de Cristo é o natural, e a mente natural não compreende as coisas do Espírito (1 Cor. 2:14).

 

A Prioridade da Dogmática

 

O fato é, também, que a dogmática não espera por uma introdução, mas continua o seu trabalho na simples fé na realidade daqueles princípios que a introdução deveria demonstrar. Assim como nenhuma ciência espera até que o filósofo termine a sua investigação sobre a possibilidade do conhecimento e sobre os seus princípios epistemológicos básicos, mas precede tal investigação, também a Igreja, ao desenvolver o sistema de dogmática, não espera até que os princípios subjacentes do conhecimento de Deus sejam revelados e apresentados, mas trabalha constantemente na exposição sistemática da verdade revelada.

 

A dogmática, portanto, precede a introdução de um ponto de vista principal e, historicamente, foi desenvolvida muito antes de qualquer introdução à dogmática ter sido escrita. Tendo isto em mente, porém, a introdução à dogmática certamente preenche uma necessidade da mente e do coração humano e da mente e do coração crente. Essa mente humana deve sempre investigar não apenas a realidade, mas também a possibilidade do conhecimento de Deus – seu, como e por quê. Assim, na introdução é feita a pergunta e lhe é dada uma resposta: Como é possível o conhecimento de Deus?

 

 

 

Princípio 1: Deus Conhecendo Deus

 

Que Deus é o princípio essencial (principium essendi) de toda teologia isso tem sido corretamente enfatizado por todos os dogmáticos ao longo da história do dogma. O que significa a afirmação de que Deus é o princípio de seu próprio conhecimento? Como isso pode ser explicado? Em resposta a essas perguntas, oferecemos a seguinte explicação.

 

Deus é um Deus conhecedor. Ele não é um poder frio e abstrato, mas é o ser absoluto, perfeitamente autoconsciente e infinito, que é em si mesmo a implicação de todas as perfeições. Quando dizemos que ele é um Deus conhecedor, queremos dizer que ele é autossuficiente, mesmo em seu conhecimento. Ele não precisa de ninguém, de nenhum ser fora de si mesmo, para ser um Deus conhecedor. Ele não necessita de um objeto de conhecimento fora de sua própria plenitude infinita. Em si mesmo ele é o sujeito e objeto de todo conhecimento.

 

Ele é o sujeito perfeito e também o objeto infinitamente perfeito de seu próprio conhecimento. Quando dizemos que Deus é o princípio de todo o conhecimento de Deus, queremos dizer com isso que, no sentido mais profundo, ele é também o princípio de todo o conhecimento dele que se encontra na criatura. Se Deus fosse apenas o objeto do conhecimento em qualquer lugar ao longo da linha do conhecimento, ele não poderia ser conhecido: “Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mateus 11:27).

As Escrituras ensinam que Deus é o Deus vivo. Isto significa que ele é o Deus da aliança, o que por sua vez implica que ele tem comunhão consigo mesmo. É na Trindade que deve ser encontrado o fundamento mais profundo, o princípio fundamental de toda teologia, porque a Trindade nos ensina que Deus é um Deus autoconsciente na mais alta perfeição e que ele é o sujeito, o predicado e a união deste autoconhecimento. Pois ele é um em ser, o ser, fora do qual não há outro ser além da existência (há apenas um EU SOU; todos os outros são existência), e ele é a implicação de todas as perfeições.

 

Este eterno subsiste em três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Isto significa que a primeira pessoa é Pai, gerador, sujeito, locutor, com todas as infinitas perfeições do ser divino. Na primeira pessoa, Deus é pessoalmente Pai, mas ele é Pai em relação a si mesmo como Deus. A segunda pessoa é o Filho, o predicado, a Palavra falada, a imagem infinita e expressão do Pai, sua expressão completa. Portanto, o Filho é, com todas as infinitas perfeições da Divindade, a Palavra de Deus ao Pai. Na primeira pessoa, Deus é o sujeito; na segunda pessoa, Deus é o predicado. Na terceira pessoa, o Espírito é o predicado, como a Palavra de Deus a respeito de Deus, retorna a Deus.

 

O Espírito procede do Pai para o Filho e do Filho para o Pai. Pois “o Espírito esquadrinha todas as coisas, sim, as profundezas de Deus” (1Co 2:10). Assim, há em Deus um autoconhecimento infinito e perfeito – Deus é um Deus conhecedor.

 

 

Princípio 2: Deus, um Deus que fala

 

Disto segue-se que Deus é um Deus que fala. Ele fala de si mesmo e para si mesmo. Ele é o sujeito e o predicado de todo o seu discurso. Quando dizemos que Deus fala, devemos ter o cuidado de enfatizar que sua fala é eternamente perfeita e que não é limitada pelas imperfeições do tempo e mudanças, como é a fala do homem. De eternidade a eternidade, Deus expressa toda a plenitude de sua infinita mente e ouve a sua própria palavra. Isto é sem dúvida uma verdade que está fundamentada na concepção da Sabedoria divina no Antigo Testamento e a Palavra divina (Logos) no Novo Testamento. A palavra que Deus se dirige de eternidade a eternidade é o Filho, que está sempre “com Deus” e essencialmente é Deus (João 1:1).

 

Agora, agradou a Deus, de acordo com seu eterno beneplácito, falar de si mesmo fora de si mesmo, deixar sua palavra prosseguir fora de si mesmo (ad extra). Deve-se enfatizar que este não é um ato de necessidade, mas de soberania, de liberdade soberana, determinado por seu conselho soberano e eterno. Talvez seja perigoso tentar dizer mais sobre o motivo deste discurso de Deus fora de si mesmo. Certamente, as Escrituras nos ensinam que este discurso é motivado pela vontade suprema de Deus de glorificar a si mesmo. No entanto, a questão permanece: Por que Deus desejaria que sua fala saísse de si mesmo (ad extra), visto que sua fala dentro de si (ad intra) é eternamente perfeita?

 

 

Outra pergunta frequente surge aqui: Será que o discurso de Deus fora de si mesmo acrescenta alguma coisa à sua própria glória? Pode alguma coisa ser acrescentada àquela autoglorificação perfeita que ele tem através da Palavra e do Espírito? Aqui estamos diante do mistério último da relação entre o mundo e Deus.

 

Seja suficiente dizer que todas as obras de Deus fora dele são motivadas pelas suas obras dentro dele. A Palavra que ele fala dentro de si e para si mesmo, a Palavra eterna (Logos), é ao mesmo tempo o protótipo e o motivo da palavra que ele fala fora de si. Contemplando a plenitude de sua própria bondade à imagem de seu Filho e expressando e recebendo a plenitude de sua glória através da Palavra eterna (Logos), Deus deseja e determina deixar a Palavra incriada também sair criativamente. Esta é a ideia do princípio objetivo do conhecimento (principium cognoscendi objectivum), ou fonte objetiva do conhecimento de Deus. Devemos lembrar que também nesta palavra de Deus fora de si, ele não fala primeiro a nós, mas fala de si mesmo e para si mesmo. Ele permanece sujeito e predicado também desse conhecimento.

 

Isto é verdade no discurso de Deus na criação. As Escrituras ensinam que todas as coisas são feitas por meio do Verbo e que sem o Verbo (Logos) “nada do que foi feito se fez” (João 1:3), de modo que podemos dizer que o universo é o Verbo criado (Logos). Esta Palavra não é como uma caligrafia morta, mas é a Palavra viva de Deus que Deus continua a falar a respeito de si mesmo.

 

 

Foi porque Deus falou no princípio que o mundo recebeu a sua existência original. É porque Deus fala que o mundo continua a existir, pois ele sustenta todas as coisas pela Palavra do seu poder (Hebreus 1:3). Portanto, o universo é um discurso de Deus, variado e diferenciado em muitas palavras, mas concentrado em um tema: o próprio Deus vivo. Em toda a sua variação rica e interminável, o mundo constitui a única Palavra de Deus criada. Portanto, os “céus declaram a glória de Deus; e o firmamento mostra a obra das suas mãos” (Sl. 19:1) para si mesmo, antes de tudo. Deus cria a luz e ele a contempla. A luz que procede dele retorna para ele, e assim toda a Palavra que ele fala, e na qual ele expressa suas próprias perfeições, sempre retorna em toda a sua plenitude ao próprio sujeito.

 

Princípio 3: Deus, um Deus que Revela a Si mesmo

 

No entanto, se nada mais pudesse ser dito, não haveria revelação de Deus, porque a revelação implica este Deus que fala não só para ele mesmo, mas também para outro fora dele. Dentro destas palavras, existe um ser que pode receber e compreender o discurso de Deus sobre si mesmo e para si mesmo, isso é implícito na revelação. Uma vez que tal ser não existe por si mesmo, a revelação implica que Deus cria um tal ser que é capaz de se tornar o sujeito do seu conhecimento de Deus.

 

Este ser foi criado por Deus quando formou o homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o sopro da vida, tornando-o assim uma alma vivente, que Deus dotou com a sua própria imagem. No homem, a luz do Verbo (Logos) brilhou clara e intensamente. O homem foi dotado, em primeiro lugar, da chamada luz natural. A sua sensação quíntupla colocou-o em contato com a fala de Deus nas coisas que foram feitas, tornando-se assim nas coisas que foram feitas, de modo que ele se tornou um receptor desse discurso. Pelo seu poder de percepção, ele foi capaz de interpretar a percepção e, portanto, o discurso de Deus em relação a ela. Através do seu intelecto, foi capaz de compreender a obra de Deus como um todo e chegar ao conhecimento do Deus único. Este poder manifestou-se no ato de Adão dar nomes aos animais.

 

À luz do relato bíblico da criação do homem e da sua relação com todas as coisas e com Deus, a filosofia do idealismo deve ser enfaticamente condenada. O sujeito não cria o objeto, nem pode haver qualquer dúvida quanto à correspondência e relação adequadas entre sujeito e objeto. Mas através do Espírito, a Palavra (Logos) no homem recebeu o verdadeiro conhecimento e manteve uma relação adequada com a Palavra (Logos) na criação.

 

Segundo, este homem foi dotado de verdadeira luz espiritual, pois a imagem de Deus consistia no verdadeiro conhecimento – o conhecimento do amor, da justiça e da santidade (Efésios 4:24; Cl 3:10). O conhecimento do homem não era uma mera teologia teórica. Ele sabia com todo o seu ser, e do mais íntimo do seu coração respondeu com amor ao discurso de Deus a respeito de si mesmo. O conhecimento do homem era o conhecimento da vida.

 

Terceiro, a esta criatura, que era tão dotada com a luz dos seus sentidos e da sua percepção, e com a luz espiritual da imagem de Deus funcionando adequadamente, Deus deu o dom maravilhoso da fala inteligente. Portanto, o homem foi capaz de expressar o que captou em sua alma da fala de Deus e de declarar a glória do nome de Deus. Essa luz no homem, que foi feito à imagem de Deus, foi o princípio subjetivo original do conhecimento (principium cognoscendi subjectivum).

 

Princípio 4: Deus, um Deus que se revela em um mundo caído

 

Contudo, através do pecado, uma mudança importante foi causada no que diz respeito aos princípios subjetivos e objetivos do conhecimento. Quanto à fala de Deus através das coisas que foram criadas, não se deve dizer que foi silenciada. Muitas vezes fica a impressão de que, por causa do pecado, quase nenhum ou nenhum som dessa fala é mais ouvido na criação. Mas a luz continua a brilhar mesmo nas trevas, mesmo que as trevas não a compreendam (João 1:5). E as coisas invisíveis de Deus desde a criação do mundo são claramente vistas, sendo compreendidas através das coisas que são feitas, mais particularmente, seu eterno poder e divindade (Rm 1:20).

 

Deus ainda fala de si mesmo como aquele que deve ser temido e glorificado. Mas há outra fala de Deus por meio das coisas criadas, uma fala que não foi ouvida antes do pecado vir, mas que deve ser ouvida pela criatura, pela mesma razão que depois que o pecado entrou no mundo, Deus sempre fala de si mesmo por meio de seu discurso de sua ira santíssima. A morte foi pronunciada como sentença contra o pecador, e a morte foi executada. Além disso, a terra foi amaldiçoada e toda a criação foi sujeita à vaidade e está na escravidão da corrupção (Romanos 8:20-21). A ira de Deus é revelada do céu (Romanos 1:18).

Em outras palavras, Deus ainda fala. Falando de si mesmo através de um mundo caído, ele fala de justiça e santidade, de ira e morte. Também não há saída: no que diz respeito à fala de Deus através das coisas criadas, a porta está fechada; não há amor nem misericórdia. Deus é o terror da criatura que ouve sua fala.

 

Também o assunto do conhecimento de Deus foi mudado pelo pecado, pois toda a luz que havia no homem tornou-se trevas.[15] Isso não significa que o homem se tornou irracional. Ele reteve alguns vestígios de luz natural; à luz destes restos, ele percebe – e até certo ponto compreende – as coisas que são feitas e é capaz de viver a sua existência terrena.[16] Na verdade, pela mesma luz ele também recebe a palavra de Deus por meio das coisas criadas (vv. 19-20).

 

Mas esta luz, tal como é no estado atual do homem, nada mais é do que um brilho muito fraco em comparação com a luz original da clara intuição de Adão, por meio da qual ele foi capaz de perceber e compreender a Palavra de Deus na criação, como se tornou evidente em sua nomeação dos animais. Esta luz é suficiente para deixar o homem sem desculpa, porque ele percebe claramente que Deus é quem deve ser agradecido e glorificado; mas certamente não pode servir como princípio adequado para qualquer tipo de teologia natural. Uma teologia que ignora a revelação que agora veio através de Cristo Jesus nunca poderá ser mais do que uma mera filosofia do homem, sempre criando o seu próprio deus e adorando um ídolo.

 

 

 

Princípio 5: Deus, um Deus que revela Ele mesmo através de Cristo

 

Ainda outra mudança foi introduzida através do pecado, afetando tanto os princípios objetivos como subjetivos do conhecimento. Esta é a revelação de Deus em Cristo Jesus. Em Cristo, o Filho encarnado de Deus, é ele mesmo a revelação do Pai, não apenas em sua pessoa, mas também em toda a sua obra, quando morreu na cruz, ressuscitou no terceiro dia e foi exaltado à direita de Deus - nele o Altíssimo revela-se no meio das trevas do pecado e da morte como o Deus da salvação, que não apenas chama as coisas que não são como se fossem, mas também vivifica os mortos (Romanos 4:17), como o Deus que chama a luz das trevas, a justiça do pecado, a vida da morte.

 

No meio do discurso de condenação e maldição de Deus a respeito de si mesmo, um novo discurso foi ouvido, o discurso do evangelho de Deus a respeito de seu Filho. Foi ouvido desde o início: pois mesmo no paraíso o santo evangelho de Deus foi proclamado, e seu discurso foi ouvido ao longo dos tempos da história por patriarcas e profetas, tanto em revelação direta como em visões e sonhos. Foi ouvido através do discurso da lei do Antigo Testamento, pois ele falou através de todas as sombras da antiga dispensação. Foi finalmente realizado, falado aos homens diretamente no Filho encarnado, crucificado, ressuscitado e exaltado. Foi ouvido na nova dispensação pelos apóstolos e evangelistas. O conteúdo deste novo discurso de Deus que a igreja possui agora no registro inspirado das Sagradas Escrituras.

Expor o significado deste discurso de forma sistemática é tarefa da dogmática. Portanto, é lógico que para o dogmático as Escrituras sejam o princípio objetivo do conhecimento. Deve ser enfatizado que somente elas, e nada mais, são a fonte de seu conhecimento dogmático. Este princípio não consiste em dois elementos, uma revelação geral e uma revelação especial. É realmente verdade que “Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite mostra sabedoria a outra noite.” (Salmo 19:2); mas mesmo este discurso de Deus na criação e na história não pode ser entendido adequadamente, exceto quando é ouvido e compreendido em conexão com o que é interpretado pelo discurso de Deus em Jesus Cristo, nosso Senhor.

 

Mesmo assim, nem tudo está dito a respeito desta nova obra e discurso de Deus a respeito de si mesmo, pois o homem natural nunca poderá ouvir o discurso. Ele não tem olhos para ver e nem ouvidos para ouvir, e não pode compreender ou discernir as coisas do Espírito (1 Coríntios 2:14). Poderíamos dizer que o tema de 1 Coríntios 2 é que esta nova fala de Deus só pode ser recebida pelo homem espiritual e que, portanto, o verdadeiro princípio subjetivo do conhecimento é o Espírito de Deus em Cristo.

 

O apóstolo começa dizendo que era impossível para ele vir aos coríntios com excelência de fala ou de sabedoria humana, com qualquer demonstração de aprendizado ou filosofia humana, ao proclamar o testemunho de Deus; para este testemunho, este novo discurso de Deus dizia respeito a Cristo e este crucificado, e este assunto não permitia a forma de discurso ou sabedoria humana. Portanto, o discurso e a pregação do apóstolo não consistiram em palavras persuasivas de raciocínio ou filosofia humana, mas simplesmente numa demonstração de espírito e poder (vv. 1-5).

 

Isto não significa, porém, que ele e os outros apóstolos não falassem com sabedoria. Eles fizeram isso, mas não foi a sabedoria deste mundo ou dos governantes deste mundo (vv. 6, 8). Era uma sabedoria que pertence à esfera do mistério e, portanto, só pode ser falada nessa esfera (v. 7). O orador deve mover-se nessa esfera de mistério para poder reproduzir este novo discurso de Deus, porque este discurso diz respeito à glória que Deus determinou antes dos tempos ao conceder ao seu povo. Portanto, é um discurso oculto no que diz respeito a este cosmos atual.

 

Que a sabedoria não é deste mundo é evidente, pelo fato de que o chefe deste mundo crucificou o Senhor daquela glória (v. 8). Além disso, isso está em harmonia com o que está escrito em Isaías 64:4: “Porque desde a antiguidade não se ouviu, nem com ouvidos se percebeu, nem com os olhos se viu um Deus além de ti que trabalha para aquele que nele espera.” A sabedoria que os apóstolos falam, portanto, não deve ser descoberta pela filosofia empírica ou especulativa (1Co 2:8-9).

 

Contudo, Deus revelou esta sabedoria oculta aos apóstolos através do seu Espírito (v. 10). Este Espírito é o princípio de todo conhecimento de Deus dentro da adorável Trindade. O Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as profundezas de Deus. Assim como somente o espírito do homem sabe o que há no homem, somente o Espírito de Deus sabe o que há em Deus (v. 11). Este Espírito, não o espírito do mundo (cosmos), os apóstolos receberam; isto é, ele habita neles, ele os ilumina e opera sobre eles de tal maneira que eles também se tornam sujeitos do conhecimento da nova fala de Deus. Os apóstolos escreveram o que eles receberam do Espírito para que pudessem conhecer as coisas concedidas à igreja pela graça (v.12). Nos apóstolos, o Espírito é o verdadeiro princípio subjetivo do conhecimento de Deus. Daí resulta, continua o apóstolo, que eles não podem falar como os filósofos, enquanto tentam encontrar uma solução para os problemas do mundo, seja através do que veem e ouvem, seja através da imaginação e das considerações do seu próprio coração. Os filósofos falam com palavras persuasivas (v. 4). Os apóstolos devem falar com palavras ensinadas pelo Espírito (v. 13). Da mesma forma, porque este Espírito de Deus em Cristo é o princípio subjetivo desta sabedoria divina, o homem natural não pode recebê-lo (v. 14). Para ele as coisas espirituais são loucura.

 

Somente o homem espiritual pode distinguir, discernir e julgar as coisas espirituais, pois ele tem o Espírito de Deus, através do qual ele é colocado em contato com o mistério oculto de Deus, a nova fala. Embora o homem espiritual possa discernir todas essas coisas e fale ou testemunhe delas, ele mesmo é um mistério para o homem natural e não é discernido por ninguém. A conclusão é que só quem tem a mente de Cristo pode conhecer a mente do Senhor e que somente aquele que tem o Espírito de Cristo pode conhecer a sua mente (vv. 10-16).

Segue-se, portanto, que também o princípio subjetivo do conhecimento é alterado. Cristo recebeu o Espírito e se tornou o Espírito vivificador. Através desse Espírito ele habita na igreja e constantemente comunica a si mesmo e todos os seus benefícios de luz e vida, de sabedoria e conhecimento, a todos os seus. É nesse Espírito que ele testemunha, através da palavra do evangelho, o novo discurso do Deus da nossa salvação a respeito de si mesmo. Centralmente, então, o próprio Espírito de Cristo é o princípio subjetivo do conhecimento; na medida em que a igreja se torna colaboradora de Cristo através da fé, no Espírito, essa fé é o princípio pelo qual a igreja ouve e reproduz a fala de Deus.

 



[1] Origen, De Principiis, in ANF, 4:239–384.

[2] Lactantius, The Divine Institutes, trans. William Fletcher, in ANF, 7:9–258.

[3] Augustine, The Enchiridion, Addressed to Laurentius: Being a Treatise on Faith, Hope and Love, trans. J. F. Shaw, in NPNF1, 3:237–76. For a more detailed discussion of the various names used, see H. Bavinck, Gereformeerde Dogmatiek [Reformed dogmatics], 4 vols. (Kampen: J. H. Kok, 1976), 1:1–3. The introduction of this work is now available in English translation: Prolegomena, ed. John Bolt and trans. John Vriend (Grand Rapids: Baker Book House, 2003), 26–28.

[4] Lucas Friedrick Reinhard, Synopsis Theologiae Christianae Dogmaticae [Synopsis of Christian dogmatic theology], emeratius

edita (Nurnberg: n.p., 1661).

[5] Karl Barth, The Doctrine of the Word of God, trans. G. T. Thompson, part 1 of Church Dogmatics, 13 vols. (Edinburgh: T & T Clark, 1969), §1, 1:1.

[6] Abraham Kuyper, Principles of Sacred Theology, trans. J. Hendrik de Vries (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1954), 221–27 This work is a partial translation of Kuyper’s Encyclopaedie der Heilige Godgeleerdheid [Encyclopedia of sacred theology], 2nd rev. ed. (Kampen: J. H. Kok, 1908).

[7] Herman Bavinck, The Doctrine of God, trans. William Hendricksen (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1955), 13.

[8] The Dogmatic Decrees of the Vatican Council concerning the Catholic Faith and the Church of Christ 4, in CC, 2:270–71.

[9] Karl Barth, A Palavra de Deus e a Palavra do Homem, trad. Douglas Horton (Londres: Hodder & Stoughton, 1935), 196. A citação diz: “Com todo o respeito à genialidade demonstrada em seu trabalho, não posso considerar Schleiermacher um bom professor no domínio da teologia porque, até onde eu Como posso ver, ele é desastrosamente míope em relação ao fato de que o homem, como homem, não está apenas necessitado, mas além de qualquer esperança de salvar-se; que toda a chamada religião, e não menos importante a religião cristã, compartilha desta necessidade, e que não se pode falar de Deus simplesmente falando do homem em voz alta” – Ed.

[10] Vermittelungstheologie (teologia mediadora) foi uma escola específica de teologia alemã do século XIX, inspirada por Schleiermacher, que partiu da subjetividade da fé e tentou sintetizar o cristianismo e a filosofia idealista moderna em uma religião racional e moralmente defensável – Ed.

[11] Heidelberg Catechism Q&A 24, in CC, 3:315.

[12] Johannes Coccejus, Opera [Works], 7, Summa Doctrinae de Foedere et Testamento Dei [The whole doctrine of the covenant and testament of God](Amsterdam: n.p., 1701).

[13] Jan Jacob van Oosterzee (1 de abril de 1817 - 29 de julho de 1882), Dutcho Dutch divine, nasceu em Roterdã. Ele foi educado na Universidade de Utrecht 1835-1839.  Depois de atuar como pastor em Eemnes-Binnen 1841-1841, Alkmaar 1843-1844 e Roterdão 1844-1862, em 1863 ele foi feito professor de teologia bíblica e prática na Universidade de Utrecht, com a qual ele estava variadamente ligado até o final de sua vida. Oosterzee ganhou uma reputação como pregador, foi editor do Theolog. Jahrbocher de 1845, escreveu uma série de livros notáveis sobre história religiosa, e publicou poemas em holandês (1882).

[14] An arbitrary stop is made in the works of God outgoing in time, under which in reality the last five loci would be subdivisions

[15] Belgic Confession 14, in CC, 3:398–99.

[16] Canons of Dordt 3–4.4, in CC, 3:588.

 


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